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Vermelho, como eu

Para duas professoras: Ilmah e Lígia

 

 

Já tenho ficado aflito quando preciso abrir meu guarda-roupas. Há um estado inicial de pânico e muitas tentativas de recuo, ímpeto de arranjar outra solução. Solução mesmo foi manter as portas de meu guarda-roupas sempre escancaradas, assim não preciso abri-las, e o monstro fica visível.

A camisa mais nítida está lá, imponente, com um quase ilegível escrito em lantejoulas pretas fazendo as vezes de olhos do monstro, brilhando no escuro.

Já na última fileira de camisas, uma vermelha de mangas compridas. Era uma camisa que ganhara para um novo começo, uma coisa de importância. Tinha acabado de voltar de cidade distante, aflorestada, e queria estudar. Uma mulher-tão-boa-como-uma-mãe, que já havia feito as vezes de minha professora, fez a inscrição no vestibular (de repente agora me lembro de como conheci a palavra vestibular: era muita gente chorando e gritando porque o rapaz vizinho tinha passado no tal do vestibular. Eu, menino, inocente ainda, fiz meu pedido: “Meu Deus, não quero nunca passar no vestibular”. A propósito, um dia eu conto como conheci a palavra digital). O fato é que passei. Para um tal de um curso de nome estranho, só porque a mulher-tão-boa-como-uma-mãe achou a palavra bonita. Mas me lembro que o curso foi bom.

 

O melhor foi mesmo aquele primeiro dia de aulas. O dia em que já bem moço conheci morangos, a minha maior decepção: uma linda cor, para um gosto tão aquém (um dia também conto como conheci maçãs: essas, sim, conseguiam juntar beleza, cheiro e gosto – bem, a bem da verdade, gosto de maça só mesmo pelo cheiro, mas isso é outra história). Foi esse o dia – o dos morangos – em que aquela mulher, essa que a gente abre com gosto a boca para chamar de professora, me apresentou a Cecília e a Florbela. Era tão doce Cecília, diferentemente daqueles morangos, e, como eles, tão vermelha Florbela que até combinavam com a camisa de mangas compridas que eu estava usando e que ganhei da mulher-tão-boa-como-uma-mãe.

 

Meu olho é seduzido por aquela camisa que chama atenção sempre no guarda-roupas e hoje insiste em brilhar mais, com seu bordado enorme de lantejoulas pretas (de lantejoulas eu gostava, mas nem me lembro quem me ensinou a gostar delas, ou talvez lembre, sem ainda querer lembrar). Era estranho o frequente desejo que eu tinha de usá-la. Eu precisava dela, de alguma forma (Vá entender, foi assunto até de muita terapia). Por um momento, diante das portas escancaradas do meu guarda-roupas, inquietando-me, perturbando-me, ensaio vestir mais uma vez a camisa preta de lantejoulas. Como brilham as lantejoulas e refletem nos meus olhos! Cegam meus olhos, perdidos. Que custa retirá-la do cabide e experimentar vesti-la? Olho rapidamente pro espelho. Não.

. . .

Hoje nem tem festa pra ir, nem há motivo, nem sei que roupa vestir, nem sei se alguma ainda me serve. Pego uma calça qualquer (calça nunca tem muita importância) e visto a camisa vermelha de mangas compridas.

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