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Segredos de Lúcia

 

Já era motivo de preocupação para os filhos. No início, achavam que ela estava apenas ansiosa pelo chegar da idade, sozinha numa casa grande, de gente abastada. Era então uma boa tentativa criar para ela uma fábrica de bonecos. Ela teria com o que se ocupar, coisa para preencher o tempo e distrair a memória, coisa para amenizar o sentimento de pânico que lhe tomava ultimamente. E logo uma fábrica de bonecos! Tudo que gostaria de ter, tão acostumada a criar e a bordar. De início, quase se engana. Achou mesmo que estava melhor, que conseguia trazer de volta um pouco de sentido, um gosto, um gozo. Mas o tempo foi se encarregando de mostrar-lhe a realidade.

Dirigir a fábrica de bonecos não foi suficiente. Na verdade, aos poucos, voltava aquele sentimento de medo, que ninguém consegue entender, nem explicar. Quando lhe perguntavam o motivo do pânico, ou o que era que sentia, pouco tinha a dizer. A única frase que se aproximava do que sentia era: “tenho medo de estar viva”. Ela dizia apenas isso. Ninguém entendia mesmo. Nem sua filha mais próxima, tão conhecedora de tudo. Era então necessário sugerir- lhe uma terapia.

 

Lúcia era muito reservada e costumava desconfiar das coisas. A princípio não lhe agradou a ideia de deitar-se num divã e falar de si. Na verdade, ela nunca acreditou nessas coisas e também julgava fracas as pessoas que precisam desses tipos de tratamentos. Não queria mesmo sentir-se impotente, ou ser assim julgada. Mas foi conduzida a um consultório no centro da cidade, desses em que sempre pensou encontrar um monte de gente desequilibrada.

 

Chegou ao consultório um pouco antes da hora marcada e sentou-se num sofá preto perto da porta. Não quis que ninguém a acompanhasse. Não precisaria. Não se mostraria tão dependente. Ficou lá sentada e se esforçou, discretamente, para ouvir a conversa silenciosa na parte privada do consultório. Queria saber o que as pessoas costumavam dizer naquela hora estranha de falar de si a um estranho. Não conseguia ouvir direito, nem mesmo sabia como começaria a falar quando chegasse a sua vez. Ela teria que ter a iniciativa ou o analista facilitaria as coisas? Teria mesmo coragem de falar sobre suas coisas tão privadas, e privadas até mesmo para ela, que nunca sequer ousou conscientemente perguntar-se. Tentou levantar-se do sofá e recuar. Mas não conseguiu. Não era desse tipo que volta atrás. Haveria de ir até o fim, nem que fosse ao fim daquela primeira consulta.

 

Um quadro preso na parede em frente ao sofá chamou-lhe a atenção. Não pelas suas cores ou formas, nem pela curiosidade de identificar seu autor, mas porque estava ligeiramente torto. Não tinha perdido essas manias. Desde que se entendia por gente era assim. Levantou-se então e dirigiu-se à parede onde estava o quadro. Ajeitou-o, segurando as suas duas esquinas inferiores. Olhou-o mais uma vez, sem se deter às suas formas interiores. Virou-se e sentou-se novamente no sofá. Olhou novamente o quadro e fez menção de ajeitar-lhe mais uma vez, mas agora foi tomada pela imagem: um fundo negro com um ponto branco ao centro. Não, não perecia quadro de nenhum pintor que conhecesse. Conservadora, achou que deveria ser de um desses artistas modernos. Agora já sentada, ficou um bom tempo observando o quadro, enquanto aguardava sua vez. Não conseguia imaginar o motivo de o analista tê-lo posto ali. Mas desconfiou da estratégia. Pareceu-lhe coisa mal-intencionada: ter colocado ali um desenho tão estranho! Certamente, seria para provocar seus pacientes, para que pensassem que precisariam de ajuda por não conseguirem decifrar um fundo preto com um ponto branco. Não poderia ter posto uma imagem mais reconfortante, acolhedora?

No meio desse pensamento, se dá conta de que, chorando, saía uma mulher da sala privada. Esquivando-se do olhar da nova paciente, a recém atendida sacolejou ligeiramente a bolsa e seguiu uma reta em direção à porta principal.

Lúcia ouve, então, pela primeira vez, a voz daquele com quem supostamente abriria sua vida: “Próximo!”

Achou estanho aquele chamado e permaneceu sentada. O homem veio até a entrada da sala privada, olhou para a senhora no sofá e dirigiu-se a ela. A mulher estendeu a mão e levantou-se como uma dama, como estava acostumada. Ele a direcionou a um canto de sua sala, indicou-lhe um assento próximo a sua mesa. Ela iniciou uma conversa:

 

— Lúcia, me chamo Lúcia. Disse, ainda olhando desconfiada para o divã situado num canto.

— Você vai se deitar ali quando se sentir à vontade comigo.

Ele esboçou uma pergunta, na tentativa de saber o porquê de ela estar ali, mas foi interrompido. Ela fazia as vezes do analista e tomava a iniciativa, como quem controla os turnos de fala:

— Por que colocou aquele quadro na sala de entrada?

— Não estou bem certo, mas me pareceu adequado, instigante. Assim o paciente tem algo a pensar enquanto espera.

Ela não se convenceu da resposta, mas limitou-se a guardar sua desconfiança. Haveria de ter um outro motivo. Sempre tem.

— Por que se preocupou com o quadro?

— Não me preocupei com o quadro. Na verdade, ele estava torto, e nem chamou tanto minha atenção o seu significado.

— Mas foi sua primeira pergunta ao sentar-se aqui, próximo à mesa de atendimento.

— Acho que na verdade queria um motivo para iniciar uma conversa. Um objeto previsível de uma sala pareceu-me mais fácil.

— O fato de ele estar torto chamou a sua atenção, então...

Ela não disse nada, pareceu-lhe agora mais claro o motivo do quadro. Ele intencionalmente haveria de ter colocado aquele quadro, e não outro, e haveria de tê-lo pendurado torto na parede, para testar seus pacientes. Seu silêncio haveria de deixar- lhe mais preocupado, pois teria de buscar outro gatilho para entender seus motivos.

— Há alguma coisa que a incomoda, Lúcia? Além da posição do quadro, o que mais gostaria de consertar?

A essa altura, ela já tinha certeza dos motivos. Resolveu forçar um bocejo para que entendesse que precisaria ser mais criativo em sua abordagem. Como ela permaneceu calada com a pergunta, por um longo tempo, o terapeuta informou que a sessão havia terminado e que ela deveria voltar na semana seguinte.

Ela se levantou, ajeitou a cadeira e despediu- se. Não conseguia entender como iria funcionar aquele tratamento. Sua primeira sessão teve como único assunto um quadro qualquer posto numa parede. Ele abriu a porta e direcionou-a à sala de espera. Ela preencheu um cheque com o valor da consulta, olhou mais uma vez o quadro e deixou o cheque numa escrivaninha perto do sofá. Saiu da sala, com a sensação de que não mais voltaria àquele lugar. Tomou o elevador, silenciosamente. Por dentro, as insistentes perguntas tinham um só foco: “Por que aquele quadro ali na sala de espera? Por que é que só falamos do quadro e a consulta terminou?”.

Essas perguntas permaneceram até chegar à entrada do prédio e acenar para um taxi. Ao abrir a porta da condução, pôs-se em dúvida: teria assinado o cheque? Pareceu-lhe que não. Pediu ao motorista para aguardá-la, depois de ter lhe assegurado de que poderia começar a registrar a corrida. Subiu pelo elevador, entrou na sala de espera, mas não encontrou mais o cheque. O quadro ainda estava lá, da mesma forma que o deixou minutos atrás. Olhou-o agora mais cuidadosamente e percebeu que, bem de perto, o fundo negro que tinha visto era formado por um monte de pontinhos negros, tão próximos que davam a impressão de unidade, de uma cor só. De longe não havia percebido. Mas ainda assim continuou sem entender aquele quadro.

 

O terapeuta estava agora com outra paciente. E ela não poderia esperar. Teria mesmo que voltar na semana seguinte, mas apenas para assinar o cheque que havia deixado em branco.

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