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Quando florescem os jasmins

Retornou cabisbaixa do médico, enrolada no xale branco, alvo e bordado a miçangas, como ela gostava. Nem esperou Seu Doroteu lhe abrir a porta, fez menção de querer abri-la à força, com a pouca que tinha. O jeito foi esperar o motorista fazer as suas vezes. Entrou em casa numa reta vagarosa, sem palavra alguma, sem olhar nenhum. Também há muito tempo não havia ninguém em casa para muita conversa. É o preço de um desquite antes de ter dado à luz. Sem luz, restava mesmo a escuridão da solidão do velho sobrado, herança de marido vivo que vai embora. Estava pra dentro, mais ainda nesses dias, depois da consulta marcada.

Entrou no quarto e lá ficou até findo o dia. Olhou-se no espelho, retirou delicadamente o xale, dobrou-o cuidadosamente e o acomodou próximo à cabeceira da cama. Olhou para o espelho novamente e movimentou levemente os cabelos, cacheados, sedosos. Recostou-se na cama e ficou pensando coisa antiga, guardada num canto qualquer da memória, mas já tudo embaçado, coisas dos tempos em que ensinava e colecionava, num velho caderno, poemas e pensamentos para não esquecer (por onde anda aquele caderno?). Já havia muito tempo nem conseguia mais sentir saudade. Saudade era um sentimento que nem lembrava como era. Seu jeito, talvez, de se defender das dores da memória, do que ela guarda e faz voltar quando a gente menos espera. Doía novamente as pernas, ou alguma região entre a perna direita e a bacia, inflamação decorrente da última queda no quintal, quando molhava as plantas, uma lide só dela. E sua única.

Cedeu agora a uma vontade incontrolável de ficar deitada, imóvel, paralisada em seu canto, e limitou-se a manter os olhos estranhamente abertos, grudados no alto, no forro da casa, bordado a cores muito especiais. Foi difícil ter que retornar ao médico só para esperar a confirmação da necessidade do uso da bengala. Não poderia querê-la. O pensamento na bengala misturava-se às lembranças de umas tardes especiais da infância, quando Dona Izabel, vizinha antiga, também professora, aparecia com os filhos para visitar a família, jogar conversa fora e lembrar os velhos hábitos de outros tempos, saboreando os bolinhos de chuva delicadamente preparados.

Concentrou-se nessas tardes, de forma que podia sentir de novo o cheiro da tarde, a cor da felicidade, quando corria na calçada com as meninas da vizinhança, ou quando se lambuzava na areia da rua, lá disponível para a construção interminável do calçamento.

Mas só por um instante. Coisa de um piscar de olhos.

A imagem da bengala insistia em voltar-lhe à mente, pesada, forçando os olhos, antes arregalados, a se cerrarem na direção do escuro amenizador do sono, da solidão das pálpebras.

Acordou apenas no dia seguinte com o barulho da voz tão antes suave de Odete, que chegava chamando-a para o café. Não disse nada e permaneceu na cama. Apenas virou-se para o lado e pediu para ser de novo dirigida para o mundo em que a gente fica quando dorme, um mundo paralelo, silencioso de pensamento quase sempre. Queria não sentir a vida, só o vazio e a ausência de sentimento de permanência no mundo que o sono dá. Era o mundo em que queria ficar, agora.

 

Virou-se para o lado da entrada do quarto, na tentativa de lá encontrar o sono. Odete ainda estava lá. Assustou-se com a impossibilidade de sonho, com o prenúncio do pesadelo: o embrulho comprido encostado na escrivaninha, na parede ao lado da entrada. Ela podia ver, mesmo através do papel que cobria o conteúdo. Era ela, a bengala mesmo, ofertada pelo médico. Amigo da família, ainda resolveu fazer os mimos e antecipar a dor. Ciente do diagnóstico, leva de presente para a consulta “um adereço elegante, digno de uma senhora de fino trato”. Olhou para Odete e nem precisou dizer nada. Reprovava a empregada por ter posto no quarto o embrulho abandonado no táxi. Sem graça, Odete volta a seus afazeres. A senhora nada comeu, apenas permaneceu olhando fixamente para o maldito e comprido pacote. Buscava gastar a visão, olhar tanto para a imagem até que ela não lhe significasse mais nada, como quando repetimos uma palavra demoradas vezes para que ela perca seu sentido. Manhã toda, a imagem em sua frente. Ela e a bengala. Ela e a bengala. Ela e a bengala. Ela e a bengala. Ela e a bengala. E o silêncio de palavras. E o barulho ensurdecedor do pensamento, por uma longa manhã.

 

A sintaxe desse pensamento ecoante e demorado é quebrada pelo retorno de Odete, insistente agora para que ela experimentasse o almoço. Nada disse, mas aceitou umas duas colheres do purê de abóbora. E ainda tentou tocar na asinha de frango com odor de açafrão.

Farta, inclinou-se na cama, agora impelida pelo desejo de fuga, de perder de vista a imagem do embrulho. Seus olhos buscaram centrar-se num retrato em cima do criado-mudo. Esticou levemente o braço e deitou o porta-retratos. Não queria ver nada, só a claridade da parede mais vazia do quarto. Não sentia vontade de levantar. Gostava mais do tempo em que não apenas se levantava, do tempo em que ela surgia, como o sol, com os cabelos encaracolados, levemente clareados, com poucos sinais de que estavam dormindo, apenas levemente desajeitados, bastando somente um leve toque de suas mãos para retornarem ao modo do desejo daquela cabeça.

 

Não se levantou naquele dia, nem nos dias seguintes. A não ser na hora do banho, que fazia questão de tomar. Fazia esforço e deitava-se na banheira por um longo período. Apenas recebia a visita necessária de Odete, com uma ou outra tentativa de delicadeza e a dose vital de água e alimento, além de fazer repousar sobre a escrivaninha uma nova peça íntima e mais uma camisola para as próximas trocas.

Um dia acordou em agonia, sufocada em si mesma, como se estivesse sendo estrangulada por mãos invisíveis, duras. Respirava fundo na tentativa de buscar ar e de amenizar o suor que lhe escorria pela face e por todo o corpo. Levantou-se agora mais rapidamente – suportando a dor – com o desejo de chegar à janela do quarto. Abriu as janelas como uma claustrofóbica enclausurada em seu pânico. Respirou fundo muitas vezes e sentiu o cheiro doce dos jasmins e o aroma discreto de resedá. Respirava agora mais e mais, com muita fome do ar, do cheiro, com o desejo de se misturar ao vento, como o perfume vindo das flores das plantas que pôs há muito tempo em seu jardim. Se pudesse escolher uma forma de morrer queria esta: misturar-se ao ar e perder-se em aroma na imensidão do mundo. Perfume não deve morrer nunca – era o que pensava – só deve estar em um pedaço de ar desse tamanho perdido de universo.

 

Virou-se para o quarto, em direção ao banheiro. Olhou-se no espelho. Parou. Balançou levemente os cabelos com as mãos. E, em reflexo, impunha-se a ela o embrulho, como quem quer aparecer num filme alheio, fazer questão de ser personagem. Virou-se. E, numa tentativa de encará-lo, pegou o embrulho escorado na escrivaninha e retirou dele a bengala. Era uma bengala antiga, de cabo banhado a prata e bordado com delicadas pedras azuladas. Repousou cuidadosamente a bengala na cama e dirigiu-se a sua suíte. Vagarosamente deitou-se na banheira e lavou o corpo todo ainda suado. Voltou ao quarto, vestiu o vestido de que mais gostava, maquiou-se como de costume, sem pena das sombras, do pó-de- arroz, bem carregado na punce, e do batom rosa chá. Polvilhou um pouco de Alma de Flores pelo pescoço delgado, agora delicadamente esbranquiçado pelo talco. Ainda levou novamente as mãos aos cabelos, acertando um ou outro cacho.

Pegou a bela bengala prateada e de pedras azuis e saiu. Nem sabia para onde ir, mas se sentiu bem agora em sua companhia. Levantou o olhar e andou para a frente, acompanhando o aroma dos jasmins.

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