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Luto

Era o sonho do menino vestir uma calça. E nem era mais tão menino. Então o sonho do menino foi apenas sonho, porque a possibilidade de uma calça só veio mais tarde, quando já estava mais crescido, quando já, ainda inocente, começava a se sentir um pouco homem. A oportunidade de ter sua primeira calça veio com a realização da primeira comunhão, lá pelos seus doze anos. É, o menino era ainda mesmo um menino, um menino que durou até mais tarde, muito mais tarde mesmo.

Ia às aulas de catecismo regularmente, conhecia todas as suas novas responsabilidades, frequentava a missa e fazia questão de sempre participar dela, ora lendo os trechos selecionados das Escrituras, ora cantando, e muitas vezes ambas as coisas. O anúncio do dia da primeira comunhão veio logo após a morte do pai. Era difícil para o menino disfarçar a alegria: o desejo da calça era muito grande para entender. Haveria de ter seu momento de sair de casa com sua calça comprida. Já haviam decidido, teria que ser calça e camisa brancas para participar da cerimônia. A cor nem importava muito para ele, importava ser calça.

O menino tinha lá guardado algum medo da mãe, de seus motivos (mas ele promete um dia contar a mais bela história de sua Mãe e sobre fatias de uma única goiaba esperando na geladeira: seis filhos, seis pedaços). Ele sabia que, no fundo, a mãe sofria, que tinha agora muitas outras preocupações. Mas, num dia qualquer de feira, que era sempre no sábado, ousou falar com ela sobre a roupa exigida para a primeira comunhão. A mãe foi breve. Naquela época, economizava tudo, até palavras: “Pode não, não tou podendo”.

O menino não insistiu, não como esses meninos de hoje. Ele conhecia seu lugar de menino e preferiu isolar-se no quarto o quanto pôde. No jantar, uma outra tentativa: “Deixa, Mãe, eu me sinto pronto. Deixa eu participar.” No fundo, ele sabia que era difícil dobrá-la. Ele já tinha percebido isso quando desejou participar da banda do colégio e foi proibido. Tudo porque a mãe o achava muito fraco para poder desfilar carregando um bumbo. E ele já tinha até conseguido a vaga. Bem, mas a decisão agora poderia ser outra, não custava nada tentar. Não deu certo, ela conhecia seus direitos de mãe e sabia da impossibilidade de conseguir comprar as roupas necessárias para o festejo.

No último dia de catecismo antes da primeira comunhão, todos os seus colegas estavam eufóricos. A professora confirmava com cada um seu nome completo para a preparação do diploma, um papel preenchido que entregavam ao final da missa. Parecia algo de muita importância, parecia mesmo. Mas o menino apenas disse que não tomaria parte. Toda a turma iria participar, informava a professora, e os que decidissem pelo contrário (com um olhar de desaprovação para o menino) deveriam apenas fazer a confissão e tomar a fila normal na segunda missa do dia. A primeira missa era especial para os alunos da primeira comunhão, para aqueles que confirmaram sua participação com a pompa e a circunstância exigidas.

 

O menino voltou cabisbaixo para casa. Revoltava-se com a morte do pai. Com a situação nova na casa. Como não entendesse tudo, isolou-se novamente em seu quarto. Evitava pensar. Ousou até abrir o guarda-roupas dos irmãos para ver se encontrava alguma peça possível para usar no dia do festejo (a essa altura todo mundo, depois de grande, já só usava jeans). Não, não havia a exigida calça. Camisa branca ele até tinha, mas a bendita calça, nada. Tinha uma bermuda já meio surrada, branca, dobrada em meio a outras peças diárias.

 

Passaram-se os dias da semana e chegou o sonhado sábado. O menino sempre gostou dos sábados. Costumava acordar cedo e dormir o mais tarde possível, para aproveitar o melhor dia da semana, inteirinho. Foi cedo à igreja para fazer sua confissão. Não conseguia se lembrar de seus pecados, teve mesmo que inventar um ou dois (“Eu briguei com meu irmão”, “xinguei minha Mãe escondido”). Criativo, não inventou mais para evitar penitência comprida. Mais tarde, já próximo à hora da missa, tomou seu banho, vestiu uma roupa qualquer e se dirigiu à igreja. Lá estava a fila já formada para a grande entrada. Era tudo tão alvo. Os meninos, com terços, catecismos e uma vela decorada à mão, ensaiavam a primeira canção: “Vem ó senhor, vem trazer o vinho e o pão aqui neste altar. Vem às crianças mostrar Jesus Salvador por amor se entregar”. Era bonito, uma grande fila branca, vestidos bordados, cheios de arremates e fitas, abundantes de babados, e calças, muitas calças, brancas. Brancas. Calças. O menino sentiu um desejo enorme de estar ali, com o traje exigido, com terço e catecismo, com pai e com mãe. Não, não era mais possível, faltava o pai, faltava a calça. Olhou de longe por algum tempo e voltou para casa (vai, coragem, luta, Menino!).

Abriu o guarda-roupas, pegou sua camisa branca de botões, vestiu a bermuda já surrada. Foi à casa da avó (pertinho), abriu uma gaveta de uma cristaleira antiga e dela retirou um velho terço e um catecismo. Voltou a sua casa (rápido!). Pegou duas velas brancas, cortou a ponta de uma delas e, com o fogo acesso (cuidado, Menino!), derreteu-lhe a ponta para fazer uma emenda na outra. Dirigiu-se à igreja, sozinho.

Não teve entrada solene, a missa já havia começado. Não teve a experiência da calça, ainda. Não teve diploma aplaudido no final. Nem mesmo pai e mãe. Teve olhares estranhos, teve longo silêncio. Teve vela branca – comprida –, teve terço e catecismo. E teve a primeira comunhão do menino.

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