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O livro de Sofia

Na escola não tinha livros. Tinha aqueles livros de distribuição oficial, o mesmo para todo mundo. Eu me lembro de uma de suas histórias: O jardim do Caticó. Era uma história perdida no meio daqueles livros que não tinham muita importância, desses livros que trazem histórias só para se aprender a ler. Livro, livro mesmo, só conheci mais tarde, quando Dona Sofia tornou-se nossa professora. Hoje penso que, talvez, Dona Sofia fosse mais importante que os próprios livros. Ela era daquelas mulheres, daquelas professoras que povoam a imaginação por muito tempo, que alargam para quase toda a vida o desejo de ser aprendiz.

A escola era mesmo um lugar muito importante. Lugar de merenda e de se “tornar alguém na vida”. Uma lição diária, ouvida atentamente. Dona Sofia era mesmo uma professora: ensinava a cantar canções tradicionais, a recitar poemas, junto às lições de matemática e de português. Ela tinha um caderno que sempre pensei em roubar-lhe. Ele tinha uma capa bem forrada, aveludada, com a inscrição “Tudo” em letras bordadas. E o caderno tinha tudo mesmo. Era uma seleção de poemas, canções, pensamentos, que ela recolhia e copiava. Dali saíam as lições mais importantes da escola, mais importantes que as dos livros oficiais, distribuídos a cada ano. Não, eu nunca consegui roubar o caderno de Dona Sofia, mas não precisei fazê-lo.

Um dia Dona Sofia chegou à escola com uma estante. Com um certo suspense, deu um jeito de colocá-la num lugar de destaque na sala de aula. Antes de começar as lições do dia, fez questão de dizer: “Aqui vai ser a nossa biblioteca”. A gente não sabia bem o que era uma biblioteca, mas quando ela disse que ali estariam dezenas de livros para levarmos para casa, foi uma alegria. Era grande a expectativa.

No dia seguinte, quando chegamos à escola, Dona Sofia já havia arrumado a biblioteca. Organizou os livros de uma maneira especial. Não os colocou com a lombada virada para o leitor. Colocou-os com a capa à mostra, dando-nos a impressão de que ali havia muito mais títulos à nossa disposição.

Na hora da saída, nos dirigimos à biblioteca, que, na verdade, era apenas um pedacinho de nossa sala de aula, e escolhemos nossos títulos. Eu levei A ilha perdida. Em minha casa tinha um sofá amarelo, de napa, pouco confortável, não como esses de hoje. Lá fiquei horas a fio lendo as aventuras de dois meninos perdidos numa ilha. Minha Mãe me chamava para comer (naquele tempo, a Mãe chamava para comer mesmo: “Vem comer, menino”. Não chamava para almoçar ou para jantar.). Eu não sentia fome. Preferia ficar ali, comendo aquelas páginas, vagarosamente. Levei o resto do dia atento ao livro. Quando o terminei, senti, pela primeira vez, um sentimento estranho. Andei pelo velho jardim de minha rua com uma enorme saudade. Não saudade das personagens do livro, era saudade de estar lendo aquela história. Mas haveria de ter outra história. A nossa biblioteca era muito grande. Deveria ter dezenas de livros naquela estante no canto da sala.

Eu ainda era um principiante no mundo da leitura, desses que ainda não sabem o que escolher. Mas Dona Sofia era uma orientadora e tanto, conhecia todas aquelas histórias. Já tinha lido tudo. Dava para ver, porque ela sabia nos contar muitos detalhes, deixando reservado em suspense tudo aquilo que a gente mesmo haveria de descobrir lendo (esse respeito ao leitor já existia antes de tomarmos emprestado esta palavra feia: spoiler). E ela me orientou a ler toda a coleção de livros chamada de “Série Vaga-lume”. Disse assim: “Se você gostou de A ilha perdida, certamente irá gostar dos outros livros da série”. Foi assim que li O caso da borboleta Atíria, O Mistério do Cinco Estrelas, Éramos seis, Menino de Asas, Sozinha no mundo, e tantos outros. Dona Sofia estava certa, eu adorava a série, e adorava olhar a capa dos outros títulos no fundo de cada livro, só para já ir pensando no próximo que iria ler.

Nas férias, íamos de vez em quando à escola para a distribuição de lanche. Durante o ano, muitas vezes invejava a merenda dos outros meninos. Abastados, traziam sempre maçãs vermelhinhas, enroladas por uma seda lilás, bem clarinha. Meus primeiros contatos com a fruta foram só de olfato, reaproveitando a seda abandonada nos cantos pelos outros meninos, cujo odor eu absorvia incontáveis e lentas vezes para garantir uma ideia do gosto. Era bom ir à escola nas férias. Os abastados lá não iam, e a escola fazia merenda para os demais, mesmo nesse recesso de aulas, com os ingredientes que haviam sobrado do ano letivo (nada de maçãs). E Dona Sofia? Bem, ela deixava a sua estante à disposição. Livros, livros, livros. Assim, comíamos a esperada merenda e nos fartávamos com qualquer momento de leitura.

No primeiro dia de aula, depois das férias, chegamos à sala e não encontramos a biblioteca. Não encontramos também Dona Sofia. Apenas o diretor nos informou que o dono da livraria tinha passado lá para recolher os livros. Todo mundo especulava. Talvez Dona Sofia não tivesse feito o pagamento dos livros. Talvez era só emprestado. Era tanto talvez que nos confundia.

Eu sempre tive vontade de ficar com algum daqueles livros. Talvez A ilha perdida, como lembrança do primeiro livro que li. Dava vontade de ser o dono deles, de tê-los à disposição. E dava vontade também de ter aquele caderno da professora. Não, eu nunca consegui roubar o famoso caderno de Dona Sofia, mas não precisei fazê-lo. No fundo da sala, numa carteira velha, isolada, estava lá o caderno com as letras bordadas “Tudo”. Eu o conservei comigo, guardado. Bem guardado mesmo, não só porque era a prova do falso crime, de meu único suposto roubo. No fundo, desconfiava que a memória não conseguiria guardar todos os seus segredos.

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