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Fora do palco

Ele gostava de representar. E tinha o pai doente em casa. Não chamava a sua atenção o papel de filho sofrendo pela morte anunciada, ainda que já estivesse crescido e já pudesse entender essas coisas. Talvez fosse uma espécie de fuga. O fato é que ele preferia estar ali, com seu grupo, encenando uma montagem teatral para os curiosos da cidade. Não era nada sofisticado, não. Era mesmo coisa de fundo de quintal e quem organizava era uma mocinha chamada Socorro, mas era seu tempo de estar ao lado de Dulce, a garota que ele sonhou um dia beijar. Era tudo tão infantil, infantil mesmo. Quem poderia imaginar aquele rapazote no meio de guris fazendo o papel de Caçador que iria salvar Chapeuzinho. É que no fundo ele se sentia ainda muito menino. Sua única ponte com uma outra fase da vida era aquele interesse por Dulce, sua amada escondida, alvo de seu desejo de um beijo.

Ele não estranhava o julgamento das pessoas. Havia quem não entendia vê-lo ali enquanto seu pai definhava em casa. Ele percebia, percebia cada olhar de reprovação. Sentia-se como um assassino à espera de ser pego. A acusação constante tinha, então, seus efeitos. Mas permaneceu no jogo e, até o fim, encenou o papel de caçador que salva a doce menina. Era tão estranho, tudo, ser o caçador, o herói, e ser o bandido. Qual deles seria seu verdadeiro papel? Queria mesmo era que a história fosse de príncipes e princesas e que houvesse o prometido beijo, o clímax costumeiro dessas histórias infantis.

Na tardinha do dia seguinte, a turma se reuniu. Uma nova montagem seria feita. Ele insiste na Bela Adormecida. Queria ser o príncipe que surge no final para salvar a moça com um doce beijo. E Dulce haveria de ser a Bela. A divisão de papéis é quebrada pela chegada de um rapazote numa bicicleta. Era seu irmão, com o anúncio de que seu pai estava muito mal. Parecia até o mensageiro das histórias, que chegava numa carruagem e abria o pergaminho com uma notícia. Mas a realidade não convidava, se impunha. E naquele dia jogou sobre ele toda a sua fúria. Ele saiu com seu irmão. Não quis a garupa da bicicleta, foi andando cabisbaixo atrás. Deixou para trás seu grande sonho e foi viver a realidade que o esperava. (Socorro! Socorro nada podia fazer!)

Não fosse o pai doente na cama, a casa parecia em festa. Cheia de gente, servida, farta. Ele apenas foi para o quarto. Não tinha raiva do pai. Odiava, na verdade, o momento escolhido pela realidade para construir seu duro roteiro. Viu sua mãe chorando e quase fez menção de ir enxugar-lhe as lágrimas (a realidade um dia, mesmo com as esperanças dos verdes-abacates, ainda seria mais dura com ela, e ele talvez já desconfiasse disso). Mas apenas se dirigiu ao quarto.

Demorou a dormir, com as idas e vindas dentro da casa, com as conversas costumeiras desses momentos. Não era dado a acordar durante a noite. Haveria de dormir e só acordar no dia seguinte. E iria se sentir aliviado quando acordasse e percebesse que tudo não havia passado de um pesadelo. Haveria alguém que faz algumas vezes um roteiro que ninguém quer representar. Então, ele é amassado e aquela realidade ficcional nunca irá existir (ele pensaria assim, mas talvez com outras palavras). Adormeceu.

. . .

E foi acordado no meio da noite, com uma estranha movimentação dentro da casa, com choros, incensos e velas. Estaria sonhando? (Por que se virou para o lado e tentou dormir novamente? Por que viu um corpo sendo levado para a sala e ainda assim voltou a dormir? Por que esperou no dia seguinte sua mãe vir acordá-lo com a notícia da morte de seu pai? Por que o pânico em sair da cama, na demorada espera de sua mãe? Medo de não conseguir convencer que acabara de saber a dura notícia? Por que somente naquele momento ficou na cama a chorar? Por que a partir daquele dia passou a temer sapatos pretos? Ele não respondia a essas perguntas. Na verdade, nunca as respondeu.)

Não foi ao enterro do seu pai. Nem quando Dulce apareceu e o convidou a ir com ela. Não sabia qual seria agora o seu papel e tinha medo de errar as falas, ou talvez de ficar mudo.

Não foi mesmo o príncipe da Bela Adormecida, nem nunca mais se interessou por essas histórias. Haveria de deixar o roteiro ser escrito por outras mãos, as perigosas mãos do destino. Haveria agora o tempo de crescer.

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