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De salto alto

Ela era pequena, pequena mesmo, toda branca, branquinha, e tinha apenas uma grande mancha preta recobrindo cada pata. E andava pela casa com ares de lady. Tão delicada e esbelta, parecia desfilar, sempre de sapatos altos, e não nos deixava saber, nem por um minuto, que dedicava a nós alguma importância. Mas gostava de dormir no meu peito. E por lá ronronava horas a fio. E eu deixava, pois visita de gato é rara, poucas vezes eles nos dedicam qualquer consideração. Às vezes tinha vontade de fazer como ela e fingir que não me importava com sua presença, mas não resistia aos doces encantos de Fabíola.

Era esse mesmo o nome dela: Fabíola. Ela era filha de uma gata que desapareceu, aliás como quase todos os gatos não descendentes de raças ditas superiores. Um dia eles simplesmente se vão. A mãe de Fabíola desapareceu quando ela ainda era apenas um pequeno filhote de uma semana (e pouco depois que desaparecera também a mais doce das criaturas da minha vida). Então, aquele ser pequenino era agora a responsabilidade minha (ou talvez era eu quem precisava mais dela), e adorava lhe oferecer uma espécie de mamadeira, um apetrecho que a gente faz para gato que perdeu a mãe desde cedo. Ela não parecia muito gulosa, mas comigo tomava gulosamente todo o seu leite, empurrando minhas mãos, como quem aperta as tetas da mãe para tirar mais daquele líquido vital. Quando se sentia satisfeita, mexia-se toda em meu colo, já inquieta para fazer outra coisa (dormir, geralmente). Coisas de gato.

Fabíola tinha mais três irmãos: Petrônio e outros dois gatos que nunca chegaram a ter nome. Aprendi desde cedo que quem dá nome é dono, e como não podia ter quatro gatos, deixei dois sem nome, na esperança de que alguém os batizasse e, dono de verdade, os levasse. E foi com Petrônio e seus dois irmãos sem nome que deixei Fabíola em casa, num desses feriados prolongados.

Sempre achei vantajoso ter gatos, porque eles são mais independentes, às vezes independentes demais. No fundo da casa, numa área coberta, uma tigela com ração e uma bacia de água para os três dias que passaria fora. E todas as noites uma oração (como se gato acreditasse nessas coisas) para que ficasse tudo bem com eles. Eu já era um homem que pouco acreditava em orações, mas na dúvida...

Voltei ansioso da viagem. Esperava retornar e encontrar Fabíola à minha espera, para vê-la se jogando em cima de mim no sofá, e ronronando em meu peito. Tinha acabado de reformar a casa e estava animado para vê-los brincando no quintal. Mas não encontrei Fabíola. Vi apenas Petrônio dormindo no fundo do quintal, na sombra de uma árvore. Logo depois apareceram os outros dois. Pensei que Fabíola estava apenas querendo fazer suspense e aparecer depois dos outros, coisa de gata que se sabe predileta. Conhecendo os hábitos noturnos típicos desses felinos, esperei até adentrar a noite, já com um aperto por dentro (e o medo de mais uma perda).

Depois de longa espera, rodei toda a minha rua e todas as ruas que ficavam perto de minha casa, mas não a encontrei. Era estranho aos vizinhos ver um homem às lágrimas, chocalhando um saco de ração e gritando o nome de uma gata pelas ruas, mas eu nem ligava. Alguns me diziam que gato é assim mesmo, que eles costumam desaparecer e voltar depois, como se nada tivesse acontecido. Outros diziam que gato costuma ficar em casa de donos que os tratam bem (aliás, há um monte de teorias sobre gato; todo mundo para entender tudo sobre eles. E ainda há as teorias trágicas).

Entre tantos destinos para gato fujão, há cá dentro o desejo de que alguma criança mais sensível tenha se rendido aos seus encantos. Mas até hoje, sempre ando pelas ruas como se estivesse procurando por ela. Às vezes, me pego olhando detalhadamente cada canto, na esperança de vê-la perdida por algum lugar. Às vezes paro numa esquina próxima de casa. E olho para todos os lados, demoradamente, à espera de vê-la elegantemente desfilando, na passarela larga da rua. Às vezes me pego rezando para o anjo-da-guarda de Fabíola (e rio triste ao me questionar se existem esses serviços celestiais para gatos). Mas uma coisa eu já aprendi: gatos existem para serem amados com desapego, porque poucos deles costumam ter donos. Fabíola é do mundo (assim como as borboletas azuis e os bichos esperança).

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