A passageira
da linha 33
(Um pouco antes de ter a necessidade de lenços e mais lenços, ela mostrou seus medos: “E se não acertar voltar, e se errar o caminho, e se me perder...”)
O piscar de olhos pode durar uma eternidade, porque o tempo é sempre um mistério, questão ainda sem muita explicação. Ela
havia acabado de abrir os olhos, depois de uma dessas piscadas aparentemente rápidas, despretensiosas. O último degrau do ônibus, o pé agora na rua. A mulher, já quase idosa, começou a gritar, mas era um grito agonizantemente oco, desses estranhos, quase uns grunhidos aparentados com nossos sons mais primitivos. Ela não se lembrava de nada. Para onde estava indo? O que fazia no ônibus? As mãos na cabeça, como quem quer segurar o juízo, recobrar a verdade. Mas qual verdade?
O motorista parou o ônibus, porque precisava registrar a ocorrência. Assalto já não era tanta novidade assim: era parar o ônibus, levar uma ou duas testemunhas e preencher a papelada na delegacia mais próxima. Depois era dar a partida novamente e ter que ouvir a reclamação costumeira do amontoado impaciente de gente que se espremia no ônibus. Mas estranhava a novidade daquela cena: uma senhora parada, depois do último degrau, impedindo a saída dos demais passageiros. Empurrada pela força da pressa dos que queriam sair, enquanto aguardavam os procedimentos de registro da ocorrência, ela passa a agarrar um e outro, de boca selada e olhos gritantes. Da janela da condução, o povo que preferiu esperar sentado apreciava o espetáculo não ensaiado da mulher, solitária na nenhuma lembrança de sua vida. Ela apenas fazia as óbvias perguntas a ninguém: o que estou fazendo aqui, em que cidade estou. Não ousou perguntar nem a si a principal “quem sou eu”. Sem nem interrogação, as perguntas soavam como motivo de festa para a plateia que se formava, já quase crente de que se tratava de mais uma dessas promoções feitas pelo comércio para atrair o povo pobre que se amontoa nos pontos de ônibus.
Nos olhos, agora, apenas a expressão do vazio – ah esses olhos que insistem em mostrar o que se esconde nos recônditos da cabeça! Eles entregavam a agonia de nada para pensar! Na mente da estranha senhora apenas a angústia da tentativa da lembrança. Sem sucesso. Agora ziguezagueava para todos os lados, mas com dificuldade, quase em câmera lenta, gritando por socorro. Não conseguia, não reconhecia aquela cidade, aquelas pessoas, nem o moleque que empurrava a cabeça para fora da janela do ônibus, com a sugestão em forma de algazarra: “Oh, dona, registra ocorrência também, quem sabe a polícia não lhe encontra em qualquer lugar por aí.” Como era estranha a palavra “dona”. Nem nome. Nem nada. O nada era o que ela tinha. Não podia ser dona, dona era a única coisa que não era, mas era o nome temporário. Era isso mesmo, apenas “dona”, sem documento no bolso, sem lembrança.
Nem mesmo o olhar prum espelho na barraca de bugigangas perto da delegacia a trouxe de volta, nem o toque no rosto, nem o espanto com o cinzento cabelo. “Vai comprar, dona?” “Não, não posso”. Largou o espelho entre os cacarecos à venda. Procurou um canto para esperar...
A mulher, agora recostada numa barraca dessas que vende caldo de cana, olhou pro lado e viu que o motorista saia da delegacia e se direcionava para o ônibus. De repente, coração acelerou, parecia querer sair correndo, se pudesse, atrás do ônibus. Teve medo de estar enfartando. No fundo, sabia que não podia deixar o ônibus partir, não sem ela. O ônibus levava qualquer esperança sua de se reencontrar. Ele era sua ligação com qualquer vestígio de seu passado, fosse ele qual fosse. Não pensou muito, já estava agora agindo por impulso, mas pelo impulso de se descobrir de novo, a qualquer custo. Gritou ao motorista. Um grito oco. Quase não saiu. A cara sem expressão da mulher fez o motorista abrir a porta antes de colocar de volta o ônibus para cumprir sua rota.
A dona entrou no ônibus e seguiu passando apertada por entre toda aquela gente, na tentativa de encontrar uma poltrona vazia no fundão, na esperança de que alguém ali pudesse reconhecê-la, ter vindo da mesma origem, do mesmo ponto lá atrás no passado perto. Como algo tão perto pode já parecer tão passado assim? Ou será que nem era passado já que não era lembrança? Não conseguiu seu intento, não havia cadeira vazia, nem ninguém a reconheceu, só percebeu um ou outro riso estranho e palavras ditas por entre os dentes, julgamentos. Uma frase vinha à memória – “meu Deus, um vestígio de memória”: “se for pegar ônibus e estiver cheio, não se encoste perto de moça nova, moça nova nunca cede o assento, nem pra idoso.” Vacilou um pouco e se jogou no rapaz que se sentava numa cadeira amarela, reservada para gente mais velha. De uma coisa tinha certeza: era já de alguma idade, seus cabelos alvacentos o provavam, e aquele lugar lhe pertencia.
Não mais prestava atenção na conversa da gente do ônibus, apenas olhava pela janela e pensava na frase liberada pela memória falha: quem a teria dado aquela orientação? Olhava a rua e admirava a cidade como quem a visita pela primeira vez, como quem não conhece ainda os seus mistérios. “Eu acho que eu gosto de ruas desconhecidas, de sentir que a cidade ainda não se entregou toda para mim”. Falou isso para dentro, parecia começar a reconstruir um eu qualquer, uma personagem possível, ensaiar ser qualquer pessoa, como quem quer se prender a qualquer pensamento para ter a sensação de permanência no mundo.
O ônibus daria a sua volta pela cidade, mas haveria de retornar ao ponto onde ela possivelmente acenou com a mão para entrar. Lá haveria qualquer sinal de sua vida, qualquer pista, qualquer coisa que pudesse fazer lembrar-se de si. Era nisso que pensava enquanto observava pela janela a cena lá fora – uma cena atrás da outra sem pausas tudo muito rápido rápido mesmo num ritmo difícil de acompanhar quase cinema mudo com poucos quadros por segundo fazendo a cena andar mais depressa e para ela tudo solto sem sintaxe: bar, bebida, cartaz, cigarro, menino na sinaleira, idoso com a mão estendida, gente correndo, promoção na calçada, frutas, gente, gente, gente. Nem podia se concentrar numa cena, já vinha outra, assaltando-lhe a alma perdida.
Cansada do movimento daquela fita sem diretor, cerrou as pálpebras, queria ausentar-se da situação de plateia. E ficou por um tempo pensativa, em seu escuro escolhido. Presa, bolando um plano de fuga. Não conseguia pensar sobre o motivo do esquecimento: “Por que a gente precisa esquecer as coisas?” A pergunta era infinita, e a resposta, um vazio também demorado. Ela só sabia, instintivamente, que não podia descer do ônibus, ele era sua única lembrança.
Duas horas à frente, uma cena já vista: uma delegacia, uma barraca de caldo de cana, uma barraca de cacarecos. Por um momento quase ficou feliz, parecia uma cena lembrada, antiga, mas era o mesmo ponto onde o ônibus parou para o registro da ocorrência de assalto.
Ela fez o percurso todas as vezes, até o fim do dia. O último percurso que agora fazia era sua derradeira tentativa, senão teria de descer no fim de linha na esperança de ter por ali a sua morada e dela lembrar-se. De uma coisa tinha certeza: já conhecia todo o percurso da linha 33. (Ainda bem que ônibus ainda é como cinema antigamente: a gente entrava para assistir a uma sessão e, gostando do filme, ficava lá quantas sessões quisesse).
De repente, foi sacolejada na apertada poltrona. Assustou-se com o freio do carro. Num ponto perto de um cinema, um desses que ainda existem no centro, o ônibus parou mais uma vez – o motorista interrompeu bruscamente a corrida, nem disse nada, e se dirigiu a uma barraca de caldo de cana. O olhar de Dona o seguiu: barraca de pipoca, de caldo de cana e, ali juntinho, o cinema. Na frente, duas placas. “Aproveite o último dia do Cine Art. Breve aqui a Igreja Poderosa de Deus.” Olhou pro cartaz mais acima e viu a chamada do filme: “Dio, come ti amo: um filme antigo de novo no cinema, uma linda história de amor”. A palavra amor, escrita no cartaz, lhe pareceu familiar. Seria amada? Alguém a esperava? Perto da porta principal do prédio, uma pequena fila se formava, de jovens casais que pareciam bem mal-intencionados.
O motorista retornou, limpando o bigode com a língua. Talvez por piedade, trouxe para ela um copo do caldo de cana, e lhe ofereceu algum trocado para quando deixasse o ônibus. Agora com muita sede, ela tomou todo o doce líquido, com a nota ácida de limão. Ela teve vontade de não continuar a última corrida até o fim da linha, quis descer, assistir ao filme e depois dormir numa poltrona discreta do cinema, escondida, recolhida. Não sabia bem o que fazer quando chegasse o momento em que o motorista certamente viria lhe expulsar para que pudesse estacionar definitivamente o ônibus. Ainda restavam talvez duas paradas antes da última do dia.
Pouco depois, sem muitas palavras, o motorista anunciou: “Dona, (sinto muito) chegamos ao ponto final”.