Prefácio
Numa primeira incursão ficcional que se permite mostrar, concorrendo ao Prêmio Braskem Literatura 2006, surge José Amarante com seu volume de contos ainda em flor (assim mesmo, iniciado em minúscula). Vitorioso, traz ao público a possibilidade da leitura. Para mim, a de prefaciá-lo. Converto-me então, mesmo que estrategicamente, em sua primeira leitora, a quem cabe a tarefa de mediar a leitura de outros que, dilatando o tempo de espera do ingresso à escrita premiada, aceitam passar pelo ritual do prefácio.
Na verdade, sou a terceira leitora. O primeiro, o próprio autor, no texto de apresentação palavra primeira, pouca, generosamente põe um mapa nas mãos do leitor: o espaço onde se faz saber de um dos traços (a meu ver, vigoroso) dos catorze contos que compõem o volume ainda em flor: a tendência em fazerem-se cantos, lirismo a atravessá-los, arrastando-os da sequência puramente narrativa, que costura dados, fatos, acontecidos, e transforma-os em sentimentos, em cicatrizes fixadas na carne, na matéria da escrita, nesse instantâneo eternizado que se diz marca de um estilo lírico.
Em seguida, em forma de poema (Bala perdida), a construir um espaço de intervalo na apresentação, uma amiga traz sua experiência de leitora — uma das primeiras, conforme declara Amarante. Não será esta a confirmação da matéria poética que logo se destacou na minha incursão inicial pelos contos? Com um título, de certa forma, enigmático, que nos leva, premidos pelos acontecimentos e notícias do cotidiano, a antecipadamente querer decodificá-lo sob o signo da violência, logo somos impelidos em direção contrária, a da recuperação do solo da infância, do qual sempre brotarão desejos, perdas, recordações e saudade, matéria poética que assegura a possibilidade de sua escrita. A propósito de alguma dessas perdas e dores, leiam o segundo conto - papel de bala — e tudo ficará mais claro. Aqui, é de desejo que estou falando.
Alonguei-me propositalmente a falar dos textos prévios, reservando para o leitor o prazer de saborear os contos de José Amarante sem tanta mediação, fazendo-me então desnecessária, e franqueando largamente o espaço de leitura. Agora, já percorrendo a sequência dos contos, defronto-me com vivências de menino, de filho, do lugar entre os irmãos, do imponderável que assusta, da descoberta do sexo, da descoberta da morte, de lugares remotos, com seu ritmo, sua rotina distante daquela dos centros urbanos, dos tipos humanos mais visíveis nesses lugares, tão peculiares, tão outros sempre mesmos nas cidadezinhas por aí afora, de meninos e velhos, de mães e de filhos, de gente esquisita, de gente diferente para a percepção de um mesmo narrador em todos os contos, sempre o menino que registrou, que guardou para si as vivências, percepções e sentimentos, deles fazendo a matéria de sua ficção futura, nunca em antagonismo com a realidade.
Mas existe ainda o escritor José Amarante, que não se pode desvincular do seu repertório de leitor. E eis que, no conto a fossa, reencontro-me com uma galinha-quase-almoço em fuga, quem sabe, a mesma que fugira de um conto de Clarice Lispector e aqui tornara-se outra? E as recorrentes sensações de que, de repente, nos depararíamos com personagens de Guimarães Rosa, sensações talvez provenientes de momentos de uma dicção que nos remete àquele escritor? Entretanto, sem dúvida, é de Amarante que se trata: de um escritor de narrativas leves e ágeis, saltando economicamente pelos entremeios dos acontecimentos e, concentrando nas indispensáveis palavras o sumo do que não pode prescindir de dizer, delas fazendo a sua ficção.
Vamos, então, aos contos!
Salvador, novembro de 2006.
Lígia Telles