

pra nunca mais
ter que roer embira
Há palavras que duram toda uma vida. Perduram. Martelam insistentes, perfuram sossegos, amargam a garganta, sem que haja a mínima vontade de pronunciá-las, mas a memória faz percurso completo... palavra amarga de novo, sempre: embira?
Foi só o Pai morrer, vira e volta, mexe e vira, embira de novo: “Pois já é sabido de todo mundo, o pai já foi; agora, se eu for também, vai todo mundo ter que roer embira”. Era a forma de dizer importância e de lembrar necessidade da reserva. Era como formiga no inverno, juntando comida, pra não faltar. A formiga nunca fez as vezes de cigarra. Era formiga sempre. Alegria sempre foi a lida, a dureza, o amargo da vida.
Não tardou, depois de o Pai ir, a fartura desavisou, esqueceu. De manhã, só um copo de café, com leite quando dava, pão apoiado em cima, ou as cinco bolachas, contadas, arrumadas uma em cima das outras, aguardando a casa acordar. Era triste ver a mesa agora. Era tudo diferente, mistério novo. Mas o que aconteceu nem tinha razão de existir. Se tão boa era, ela tinha que ter paciência. Mas o gosto por sofrer...
Das lembranças do menino, uma melhor de todas. Chegar em casa, da escola, abrir geladeira e encontrar a fatia de goiaba, de que fruta fosse, ela partia tudo igualzinho, seis pedaços, cinco filhos. Fatia de melancia enchia mais a barriga, mas fatia de goiaba enchia os olhos, transbordava tudo, bonita que era. Tão pequena a fruta, mas a fatia, a lembrança... E ninguém pegava a fatia de ninguém. O código era respeitado, e casa inteira entendia.
Mas se tão boa, por quê? O menino amanheceu mais faminto naquele dia, não se contentou com as cinco bolachas enfileiradas em cima do copo. Queria mais. Queria a casa inteira de novo. Sem pensar muito, Menino pediu “só mais uns”. Ela parecia não ouvir. Menino olhava a caixa na estante, bem no alto, protegida, e tinha tantas fileiras lá dentro. Os outros quatro ficavam quietos: os mais velhos, de ciência, sabiam quietar; os novos, nem tempo ainda de falar. Mas o menino queria mais e pediu mais uma vez.
Diz que há sempre uma terceira vez para tudo na vida. Mas ela se deu por contente com duas e pronto, pulou pra cima, como animal que mata um filho pra defender outros todos. Subiu na cadeira, pegou a caixa no alto da estante. Menino quase fica feliz, mas já podia entender. Ela abre a caixa e tira um pacote lá de dentro, e tudo muito rápido: “Vai comer tudo”, disse com força mas sem exclamação. A sentença não era pra dúvida, cumprir tudo. Naquele dia, talvez por amor, talvez por defesa, foi colocando um a um cada biscoito na boca do menino. E a frase, para comer com dor: “Vocês um dia vão ter que roer embira”.
“Mas o que é embira, meu Deus? Embira?”, pensava o menino, enquanto sofria engasgado com mais uma fileira de biscoito. A palavra engasgava na mente, permanecia: “embira”. Dava medo, mais que comer todos os biscoitos de uma vez. Principiou o choro, mas menino tinha que engolir junto. O medo era imaginar como seria o mundo, quando fosse preciso roer embira, fosse o que fosse embira. Medo que durava, sem nem saber por quê.
Ela persistia, esperava cumprimento da sentença até o fim. Último biscoito, só depois sai, vai pro fundo da casa, agitada. Fuma escondido um cigarro aproveitado, já fumado mais umas duas vezes, reclama sozinha, quieta agora lá no canto. E chora também, escondido.
O menino vai pro quintal, pega um toco de carvão jogado ao chão e pinta no muro, desenha coisas que não sabe explicar, tudo muito simples, mas misterioso. Não demora, enjoo impera, o corpo põe pra fora, com a mesma estupidez com que foram postos para dentro os biscoitos. Menino não pode dizer nada, na companhia do silêncio do quintal. Jogou terra por cima.
Olhou pro chão. E viu algumas formigas, enfileiradas, passeando inocentes na irregularidade do monturo. Lembrou da fina fatia de goiaba, na geladeira, e sentiu orgulho, mas um orgulho muito grande, quase felicidade. Só foi pro quarto e tentou dormir. Ainda levou consigo a palavra, embira, roer embira, palavra estranha, insistente na cabeça do menino. Não conseguia esquecer. Não sabia bem o que era, mas podia imaginar que havia muita coisa dura para se viver. Dormiu. Queria sonhar.