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mágoa de flor

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Para Reinaldo Pamponet
ou para quem inventou o sonho,
que inventa a gente



Um dia a gente nasce. Simplesmente nasce. Vem ao mundo, brota, desemboca. Antes há um preparo, há uma mãe, um pai, desejos, há um querer. E a verdade é que a mãe queria uma flor. De qualquer cor. Nem importava a flor, mas tinha que ser flor. “É um menino”. Voz esperada, sentença contrária, fora da vontade. A flor não veio, não brotou. “A flor nasceu de mim, porque não fui suficiente”. A menina Flor foi nascida na casa, implantada, porque menino Mandu não nasceu flor. “Mas foi Pai quem trouxe”. Não quis encarar desejo não satisfeito, nem esperou muito. Flor chegou em casa depois de um mês, depois da mãe chorar o pedido não atendido pelo ventre. 

Flor cresceu com o menino, lado a lado, peito a peito. “Flor era gulosa, tomou meu peito”. Mãe ficou com Flor, amamentou, deu a vida. Cesaltina, “só nome ficou”, foi a ama de leite do outro, do menino Mandu. “Liga não, Mandu, a coitadinha veio parecendo um monstrinho, fraca que era, cheia de ferida, corpo franzino”. Flor foi a flor mais bem cuidada da casa e de todas as casas perto da casa, ornada, babados cintura abaixo e muita fita, tudo combinado, cheio de arremate. Era coisa bonita mesmo. Era quase a boneca de brincadeira da mãe. Mas Flor nem ligava. Gostava mesmo era de brincar com o menino. Menino aceitava. Menino adotou. Opção. Jogo permitido.

O menino não podia ser flor, mas tentava, rodopiava, brincava as brincadeiras mais secretas. Foi amigo de todas as bonecas. Menino tinha até medo de crescer. Mas o menino estudou, Flor saiu da escola. Menino às vezes se separava de Flor. Às vezes era bom. Havia ódio. Outras ruim, amor.

Cresceram assim. Flor e Mandu. Branco e Preta, mas quase gêmeos. Estranhamente ligados, chegava incomodar. A boneca da mãe deixava de ser boneca. Diferente das outras, não havia mais vestidos, babados, arremates. Flor desabrocha. Mãe perde o gosto. Sentimento todo diferente nasce na casa. “Pra onde foi? Pra onde foi o amor? Mas por que Mãe apressa a morte?” Pra o menino Flor podia durar tempo sem fim. Flor nasceu do menino. E a Mãe não precisa mais de Flor.

Para o menino uma viagem arranjada. Parecia até presente escolhido, pensado, quase traz felicidade. Menino se arruma, sem escolher muito. “Flor, vem com Mandu!”, chamava. “Pode não”, Mãe diz. O menino vai, sem nem saber o que é ir. A viagem. A primeira, nunca outra. Menino bem que merecia. De qualquer forma, a viagem.

Destino desconhecido, viagem nem foi muito sentida. Levou o menino a tia, pouco falante, pra dentro, com vergonha de olhar pro menino. Palavra pouca, viagem sem passeio, sem muita explicação.

Nada muito interessante, a não ser conhecer a sempre-viva, flor teimosa, e o rosa arroxeado das buganvílias que imperavam e cobriam os telhados da cidade desconhecida. Não demorou, menino se apressa, quer voltar. Um silêncio barulhento, incômodo, parecia alertar o menino. “Por que tanto cochicho?”. Menino pressentia: “Mãe vai devolver Flor”.

O menino volta pra casa. Viagem longa, melhor não ter ido. Agüentar a demora e o medo da verdade, incomodava tudo. Tudo era só pensamento, de todo jeito, desarrumado: chegar em casa e conferir. Perguntar não podia. E se chegar muito tarde? E se a casa estiver dormindo? Era muito se, se demais para agüentar. Dormiu fundo, esquecido, como quem prefere adiar a dor.

O menino chega em casa e corre para a cama da mãe. “Que alívio, Flor continua”. Estava coberta, era frio o tempo, na cama da mãe. Dorme feliz, ainda cansado. Era só esperar amanhecer.

Dia amanheceu chuvoso, trovejava forte e os pingos da chuva, finos depois da peneira do telhado, acordam o Menino. Era tudo ainda tão escuro que parecia noite. “Flor não veio acordar Mandu”. Sem pergunta sobre a viagem. Silêncio. O menino começa a adivinhar, roda a casa, vira tudo. “Que foi, Menino, chegou agoniado, vem tomar o café” – a mãe chamava como quem busca uma aproximação desajeitada. O menino arrisca a pergunta que rascunhou toda a viagem: “Mãe, cadê Flor?”, “Tá aqui mais não.” Só isso, sem mais nada. Tão seca quanto a bolacha que acabara de enfiar na boca.

Na cama da Mãe dormia a empregada, depois que o Pai morreu. Menino só lembrou de ir pro quintal. Perto do monturo, os desenhos, no muro velho, especado. Ainda tentou, sem muita graça, recobrir com o dedo a linha já quase apagada de cada figura rabiscada. “Mãe devolveu Flor, tal como a trouxe, sem autorização”. Mas menino não compreendia, não se devolvem flores. Mas Flor se foi e o mundo era grande para o menino começar a procurar.

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