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foguetes de vara, dobrados e sonhos acordados

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A Mãe Zina,

quando comecei a perceber

que escrever podia ser perigoso

 

 

Já nem levantava direito, velha que era. Andar, quando conseguia, só segurando a barriga, encurvada, como quem se protege de dor, forte. Lá dentro, ventre amargo, só segu­rou uma filha, mas achou de guardar o leão, doença ruim, no fim da vida.

Só nas alvoradas havia motivo de levantar. Foguetes de vara varavam sonhos, barulho despertador esperado, duas vezes no ano:  festa do Divino e da Padroeira. A velha surgia no parapeito da casa, madrugada, cena pouco vista, só se fosse pra receber filarmônica, a de Cachoeira, de longe. Sempre o Dobrado 220, o preferido, acordava a cidade e acordava a velha. Esforço era grande, mas saía atrás, como quem imagina último; encurvada, mas viva, quase estranhamente esguia, enrolada no xale branco, sempre alvo, limpinho, apenas com a naftalina denunciando idade.

Banda corria a cidade, gente na porta, nas janelas, gente seguindo. Cidade se vestia de vida, mesmo esquecida no meio do mundo. Procissão atrás da banda, cabia o mendigo Medonho, o doido Buché e outras autorida­des. E a velha Bibi, que parecia viver para es­perar foguetes e dobrados todo ano, duas ve­zes. Esperança de mais tempo.

Tempo outro, festa do Divino próxima, a velha pareceu querer ir outro rumo, espera­do, deixar desejo de procissão pra trás, desis­tir. Doutor, Deus que era, dá só poucos dias, nem voltar pra casa, terminar ali. Velha, sem­pre de opinião, quer a casa, o cheiro do quar­to, jasmins e boninas perto da janela.

Morte da velha foi chorada, antes do tempo. Morte anunciada. Já no primeiro dia, família se preparou, aprontou caixão, ainda de enco­menda, fez mortalha. Velha entendia, nada di­zia. Família aguarda, segundo, terceiro, quarto dia. Quinto dia era certo, jardim já todo florido como que estivesse se preparando, e o povo da casa torcendo para a flor esperar, não morrer antes. Urubus vestiam cara de condolências, rodavam toda a casa. Vela reservada, pronta, no canto da janela. Todo o teatro montado para a grande festa, para o momento em que a gente inclina o corpo e espera o aplauso de pé. Lá na cama, a cena feita, quase perfeita.

A platéia já de pé, antes da hora, olhando ansiosamente para o ato final. Acaba tudo, quando tudo tem que acabar. Vida é assim: nem sempre a cortina fecha para encerrar a peça. Perfeição é divina, manda Deus. Velha surpreende, velha sempre surpreendeu, chama Menino, neto primeiro: “Bibi quer ir não, Bibi quer alvorada, com foguete e dobrado”. Velha passou mais de ano. Não foi ainda. Fica. Velha, ela própria, vende caixão, não aquele, não assim, ir só na hora e com beleza, poeta que era.

Mas velha se previne. Dona Calu guarda todo mês dinheiro da velha, aposentadoria. Dinheiro, nem pra remédio, “precisa não”. Velha quer, na despedida, caixão honroso, merecido, quer foguetes de vara e dobrados, povo em procissão, em festa.

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