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a feira

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Ela nunca parava. Feliz só se assim. Ou nunca mais feliz de verdade. Ela não deixava saber. Mas reclamava agora quase sempre. De tudo.

Dia amanheceu como todos. Daqueles dias em que ela virava de um lado a outro da casa em busca de algo para fazer. Não restava mais nenhuma possibilidade. “Talvez a feira”, disse meio sem graça. E, sem pensar, correu para a casa do vizinho à procura de uma mesa.

Lá estava ela, velha, ainda coberta pela salmoura do antigo açougue. Seu João não se importou em emprestar a mesa. Ela se pôs a escová-la, retirando a salmoura que o tempo gravou. Bons tempos aqueles. De muita carne. O cheiro era meio estranho, de sangue seco, misturado com sal. Em pouco tempo, parecia outra: a mesa. E ela. A mesa como que nova, e ela novamente animada, viva.

 

A casa ficava a uns dois ou três muros dali. Mesa grande, como se dentro da casa tivesse sido feita, não passava pelas portas. Restavam os muros. Se jeito outro não tinha, enfrentava qualquer barreira. Pulou todos os muros, empurrando a mesa, ajuda pouca. Suada, fazia o serviço com afinco. Esperança mandava. A mesa chegou na casa.

 

Escureceu. Ela vai pra loja, arruma as mercadorias, todas. Olhos brilhavam novamente, como quando na época em que Pai era vivo. Separou tudo bem separado, cuidado de quem faz filigranas, como tudo que fazia. Contou todas as peças, situação não permitia furto, anotou tudo, encaixotou. E quase não conseguiu dormir. As caixas estavam todas lá, empilhadas à espera do amanhecer do dia. Do dia da feira.

 

Galo cantou mais cedo, mas ela já tinha amanhecido. Já de pé, ansiosa. No fundo do quintal, a galinhota, velha, também marcada pelo  tempo. Chiava, mas não acordou quase ninguém em casa. Sozinha, ela pôs cada caixa no carrinho. Bastava empurrar. Subir a ladeira da feira. Três viagens: a mesa, as caixas.

 

Procurou o melhor lugar. Poucas barracas ainda. Arrumou cada uma das peças. “Para quem venderia aquela anágua? E o vestidinho de chita?” Era o que pensava. E agradou a idéia de pendurar os lenços nas quinas da barraca. E como eram bonitos, estampados, floridos. “Havia de encantar moça da roça!” A barraca ficou linda, no meio da feira.

 

Demora pouca, a feira enche. Os burros descem a serra e povoam o espaço que antes era só dela. Feijão, café, mastruço, requeijão. Abóbora, melancia, quiabo. Geladinho, picolé, abacate. E os lenços? E as moças? Carne fresca, de sol, vísceras. O vestidinho azul lá, de chita, já empoeirado no fim da feira.

 

Em casa, todos ansiosos. Era o esperar infinito. Ela não chegava, nada. Primeiro rodou a feira, toda. Nada comprou. No fundo dos olhos, já apertados, a tristeza. Fim da tarde, o sol já se ia por entre as serras. Desce ela a ladeira, com a galinhota. Silenciosa. Primeiro a mesa. Depois as caixas empilhadas. Voz sai, bem depois, seca, rasgada: “Nem o vestidinho azul de chita, nem os lenços, não vendi nada na feira”. Escondeu o rosto no meio das caixas, como quem ainda não desistiu, como quem ainda tivesse coragem de arrumar tudo pra feira. Outra. “Foi a primeira vez que vi minha mãe chorar.”

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