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a fossa

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Entender ninguém ia, se menino dissesse o valor da casinha do quintal. Chuveiro de lata de leite em pó perfurada, chuva mesmo, fria na cabeça, só lá. E lá também a fossa. A fossa, mesmo. Rápido olhando, fossa é apenas lugar óbvio. Para o menino, a fossa escondia segredos, segredos dos mais escondidos. Lugar do mais alto pensamento, ninguém pra palavra gastar. Silêncio. Povo da casa também gostava do lugar, isolado, fundo do quintal, perto do monturo. A bicharada, volta e meia, lá. Fossa era mesmo canto pra tudo, até pra coisa velha, miúda, já sem importância.

Resistente, fossa viu até menino quase cres­cer. Viu alegria e confusão, família em festa, em apuro. Fossa na casa era mesmo destaque, quase manchete de jornal, se a pequena cida­de jornal tivesse. Primeira vez, estripulia de galinha faz festa na fossa — aliás, bicho mais cheio de estripulia que galinha não há. Esperada pra comida de domingo, galinha, gor­da, caipira, da roça, acha de desaparecer. Pa­recia fugir de destino de galinha: comida de domingo.

Alvoroço na casa, quando Amélia, cozinhei­ra, dá o alerta: "A galinha sumiu, domingo tá sem almoço". Família procurou casa toda. Dessa vez não foi roubada, destino outro de galinha caipira, traquinagem da molecada. Não havia canto, buraco nenhum, galinha quieta, se fazendo de morta. Foi o menino que gritou: "Galinha tá aqui, entrou na fossa".

Casa entrou em desespero, tirar de dentro da fossa a galinha. Teve idéia de todo mun­do. Tudo quanto é jeito. Domingo tinha que ser salvo. Buraco da fossa parecia lente de monóculo, de foto antiga, tinha que fechar um olho, pra enxergar com o outro. Imagem deprimente: lá a galinha. Tudo bem que o menino estranhava galinha comer cocô, mas pra que tanto, a gulosa até que mereceu. Fa­zer o quê, era isso mesmo.

Avô do menino faz engenhoca de madei­ra, gancho na ponta. A galinha sobe estran­gulada, olho esbugalhado, pescoço apertado. Família toda em comemoração, a galinha as­sustada ainda acha de bater as asas. Povo de casa, olhando o estado da pobre, se divide: comer ou não comer a galinha?

Demorou tempo pouco, e a galinha é amar­rada no pé de serigüela, banho de manguei­ra, Menino bem que queria saber a sensação da galinha com o primeiro, e último, banho de toda a sua vida. Ao redor da galinha, famí­lia toda em algazarra, feliz, domingo já ga­rantido. Amélia, cozinheira prendada, acei­tou matar o bicho; cozinhar não, tinha lá seus princípios, estranhos embora. Foi fazer sua função, sem muita conversa, apenas tomou um gole de pinga, dose necessária para enca­rar a dureza do serviço.

Domingo, a galinha na mesa. Menino não quis comer. Família ria da aventura, comeram galinha toda, roeram os ossos. Menino olha­va, comeu arroz e feijão — bastou — e sentou longe. Pelo menos não quebraram a fossa. Tava lá, intacta. Esperou até que arma, dispa­rada na casa, prova de crime, fosse lá jogada, aventura outra, fatal.

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